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Fragmentos da obra

Uma mulher

Uma mulher não tem tempo. Uma mulher não tem. Uma mulher não. Uma mulher. Uma. Uma mulher acorda às 7:30 mas não consegue abrir os olhos. Uma mulher sabe de cor como acionar o mecanismo soneca do celular. Uma mulher dorme mais 10 minutos de culpa. Uma mulher custa a acreditar que ainda é só terça-feira, e que terá que interromper o seu sono por ainda 5 dias. Uma mulher se espreguiça e para na posição da criança. Uma mulher nunca mais teve tempo de fazer yoga e nem quer ver o quanto enrijeceu seu corpo na próxima vez que for tentar se alongar. Uma mulher então levanta, perdida e descabelada, pega os óculos e se dirige ao banheiro. Uma mulher faz xixi, lava o rosto e coloca óculos respingados na cara que custa a acordar. Uma mulher liga o computador e chega atrasada na aula online. Uma mulher estuda tradução porquê não acredita que vai um dia conseguir sobreviver de sua escrita. Uma mulher descobre que tradução é uma ciência linda e poética. Uma mulher então planeja viver de alguma forma do seu amor pela linguagem. Uma mulher dá bom dia pra professora e pros colegas de sala. Uma mulher faz café enquanto ouve a professora falar ao longe. Uma mulher se esforça para fazer conexões mentais. Uma mulher toma café e admira a rapidez e a juventude dos estudantes também cansados. Uma mulher começa a entender algumas coisas e se anima, tomando mais café. Uma mulher se desespera porque a professora passa mais uma atividade para entregar e ela não sabe como vai fazer pra dar conta de tudo que já está atrasado. Uma mulher olha no relógio, 10:50. Uma mulher diz à professora e aos colegas que precisa sair mais cedo para trabalhar. Uma mulher deita em sua cama e fica em silêncio por exatos 10 minutos. Uma mulher levanta e vai se vestir. Uma mulher sente vontade de vestir uniforme todos os dias, como o vestidinho vermelho da Mônica e o amarelo da Magali. Uma mulher então se lembra que se vestir bonita funciona para ela de forma semelhante ao café. Então uma mulher se anima e escolhe uma combinação alegre ou lúgubre, mas irreverente, porém nunca demais, só o suficiente para se sentir especial mas sem perder o emprego. Então uma mulher escuta a outra mulher com quem divide casa chamando-a. Uma mulher vai atender essa mulher que está sentada na cama, sorrindo nervosa, com olhos molhados e vermelhos. Essa mulher mostra o teste de gravidez feito de manhã cedinho antes que todo mundo tivesse acordado. Uma mulher segura o teste sem se dar conta de que está segurando pela ponta do bastãozinho de papel que esteve imersa no primeiro xixi do dia daquela outra mulher. Uma mulher não acredita muito no que está acontecendo, enquanto admira a beleza daquela mulher loira de cabelos longos e enrolados, olhos castanhos e boca mordida. Uma mulher diz: aquele filho da puta gozou dentro de você. A outra mulher diz que avisou, que pediu pro namorado não gozar, mas ele não levava esse pedido muito a sério. Essa mesma mulher toma sua primeira dose do diário conhaque na xicrinha de café do jogo de xicrinhas coloridas que ficam em uma haste de metal em cima da mesa, a de hoje é verde claro, e a cor do conhaque é marrom translucido. Uma mulher discursa para a outra mulher, que ela não é obrigada a nada, lembra? E que ela precisa pensar muito bem. Diante do olhar piedoso da outra mulher uma mulher pede a mesma outra que não romantize pois é uma criança chorando de madrugada porque está toda cagada, toda madrugada, pelo menos 1 ano sem dormir, o seu corpo vai mudar, você quer casar com ele? Uma mulher percebe que o corpo da outra mulher se contrai quando ela diz sobre a mudança do corpo. Uma mulher escuta não à pergunta do casamento. Uma mulher xinga de novo o filho da puta irresponsável e vacilão que gozou dentro dela e que ainda por cima tava com uma verruga na cabeça do pau e não usava camisinha e nem ia atrás ver que verruga era essa. Uma mulher dá bronca na outra mulher tentando ao mesmo tempo fazê-la entender que ela é a vítima da história. Uma mulher sabe que essa outra mulher acha que tudo o que está acontecendo é culpa dela. Uma mulher diz que tem uma amiga que já ajudou outras mulheres a abortar com citotec. A outra mulher escuta atenta essa uma mulher. Uma mulher diz que precisa ir, que vai chegar atrasada no trabalho, e que eles já estão sendo muito legais de liberá-la na parte da manhã para estudar, deixando ela trabalhar por apenas 6 horas, das 12: às 18:00 e pagar essas duas horas faltantes depois. Uma mulher abraça a outra e diz que ela não está só. Duas mulheres dizem eu te amo, eu também. Uma mulher levanta e pega sua bicicleta pensando o que vai ser da outra mulher se ela não conseguir abortar, se livrar da dependência emocional, parar de beber e criar força para viver. Uma mulher muda a marcha da bicicleta e se prepara para a parte mais difícil do caminho. Uma mulher entende que precisa encher o pneu, mas que vai chegar muito atrasada e por isso é melhor deixar pra encher na volta. Uma mulher se cansa desse medo repetitivo de perder o emprego, mesmo quando não dá motivos e todos estão satisfeitos com ela. Uma mulher tem um dia todo pela frente e já está cansada. Uma mulher observa as pessoas na ciclovia e pensa no seu último romance que não deu certo. Uma mulher sobrevive ao trânsito hostil e ao sol quente se lembrando que todo dia esquece de passar protetor solar. Uma mulher chega em frente do trabalho, toca a campainha da bicicleta e espera que a recepcionista abra o portão da garagem. Uma mulher deixa o computador ligando enquanto busca mais café na cozinha. Uma mulher lembra que precisa almoçar, mas já tá tarde demais para pedir marmita. Uma mulher pensa que já é tarde demais pra muita coisa. Outra mulher oferece a essa mulher metade de sua marmita. Uma mulher agradece a generosidade. É nóis. Uma mulher come metade de um bife, arroz, feijão e salada de tomate e alface muito grata. Uma mulher verifica os e-mails e imprime as respostas importantes. Uma mulher então dá continuidade à organização do arquivo, preocupada de estar deixando alguma coisa importante passar despercebida. Uma mulher puxa papo com seu amigo homem do escritório tentando se distrair de tudo aquilo de ruim que ambos sabem e que sempre acabam mencionando que está acontecendo no mundo. Uma mulher descansa enquanto faz xixi e lembra que não tem do que reclamar enquanto troca o console de papel higiênico. Uma mulher volta a fazer o seu trabalho e ainda são 15:00 da tarde. Uma mulher se cansa da repetição e parte para outra tarefa. Uma mulher redige atas e ofícios que foram utilizados para reivindicar e registrar as demandas dos servidores sindicalizados. Uma mulher sente que tem sorte por trabalhar em um sindicato e poder ver alguma finalidade justa no produto do seu trabalho. Uma mulher gostaria de descansar da política, mas ao mesmo tempo extrai disso um sentido para continuar. Uma mulher para de olhar o relógio esperando que assim a hora passe. Uma mulher procura aquele PDF sobre plantas medicinais abortivas que salvou em algum lugar daquela nuvem lotada que ela prometeu a si mesma que organizaria nas últimas férias. Uma mulher escreve em um papel “organizar nuvens”, contente por sua ideia poética que desenvolverá em algum poema quando tiver tempo. Uma mulher recebe uma ligação da empresa de telefone avisando que a conta não foi paga e que vão cortar sua internet. Uma mulher utiliza de manipulação emocional e discursiva para convencer a atendente a deixá-la pagar em 3 dias porque nessa mesma noite ela precisa enviar um trabalho atrasado para sua professora. Uma mulher se lembra que quando chegar em casa precisará sentar de novo na frente do computador e reunir toda concentração e capacidade mental de que dispõe ao final de um dia para fazer esse trabalho que poderia ter sido feito no domingo se ela não tivesse precisado deitar quieta e assistir série depois de limpar toda a casa. Uma mulher se alegra porque agora que já são 17:00, o tempo passa rápido. Uma mulher aproveita esse tempo para conversar com a recepcionista. Uma mulher pergunta se ela está melhor e recebe a resposta no seu olhar triste. A recepcionista diz para uma mulher que vai conseguir terminar aquela relação, mesmo que de coração partido. Uma mulher diz que ele é um menino, não tem futuro. Uma mulher pensa em dizer que se também não der certo com o homem de 60 anos que tem rodeado ela e que tem uma situação financeira interessante ela pode ficar bem, sozinha, mas desiste porque nem ela mesma acredita nisso e tem medo de também chegar aos 50 sem ter um companheiro ou companheira que a ajude a enfrentar um dia atrás do outro, material e emocionalmente. Então uma mulher concorda com tudo o que a recepcionista diz e se esforça por fortalecer a autoestima dela. As duas mulheres acabam por rir de algum assunto que surge na sequência do eterno assunto amor estreitando um pouco mais o laço entre as duas. Uma mulher então vai para a lavanderia e encontra a empregada do prédio. Uma mulher pergunta como ela tem passado e ouve dessa outra mulher que o ex-marido voltou a perturbá-la. Uma mulher se preocupa com a vida da outra, quase perdida na última vez que o ex-marido bateu nela. Uma mulher relembra a outra de que pode ligar pra ela a qualquer horário achando no fundo do seu coração que ela só ligaria em uma situação muito extrema, se ligasse. Uma mulher diz as mesmas palavras de força de sempre, com alguma variação, e reza dentro de si para que a outra mulher consiga suportar a solidão no final da noite e não voltar para aquele homem que explora o seu trabalho doméstico e lhe joga panelas na cabeça quando fica bêbado. Uma mulher se despede de todos, sobe na bicicleta e passa por aquele mesmo portão que entrara há 6 horas atrás. Uma mulher passa no posto para encher o pneu e se encontra diante do mesmo dilema semanal: é tão fácil encher o pneu, não preciso aceitar a ajuda desse homem e posso exercer a minha autonomia, mas ao mesmo tempo eu estou tão cansada. Uma mulher agradece gentilmente a disposição do garoto vestido de ciclista profissional. Uma mulher sobe na bicicleta pensando que em algum momento precisa ver esse pneu que o ar não dura e pode ser que esteja furado. Uma mulher anda três quadras pra frente do banco quando percebe que esqueceu de parar. Uma mulher volta aquelas três quadras caçando beleza nas árvores para não sentir raiva de si mesma. Uma mulher deposita o cheque do salário calculando os dias úteis para cair na conta a tempo de pagar o boleto da internet. Enquanto destranca a bicicleta uma mulher se pergunta como faria tudo o que faz se tivesse um filho. Uma mulher está cansada demais para parar no mercado e resolve deixar para o dia seguinte. Uma mulher então passa direto e aproveita o vento que a velocidade do pedal oferece. Uma mulher fura o semáforo e pensa se vai morrer. Uma mulher não morre e chega viva em sua casa. Uma mulher procura comida em cima do fogão e dento da geladeira e não encontra. Uma mulher xinga mentalmente os folgados que ficaram o dia inteiro em casa e não foram capazes nem de lavar a louça da pia, mas desiste de verbalizar por preguiça de escutar coisas como “mas eu lavei a ouça ontem” ou “eu tirei o lixo semana passada”. Uma mulher vai tomar banho arrependida de não ter passado no mercado. Uma mulher abre pouco o registro do chuveiro pra água sair mais morninha e então fecha os olhos embaixo da ducha rala. Uma mulher leva bastante tempo ali, mas nunca o suficiente, com os olhos fechados embaixo do chuveiro. Uma mulher se banha de forma metódica fazendo tudo devagar para fazer esse rito durar mais. Uma mulher entende que já foi bastante tempo e desliga o chuveiro. Uma mulher coloca seu pijama mais confortável. Uma mulher deseja deitar e assistir série. Na verdade, uma mulher deseja que aquele rapaz com quem saiu por 1 mês, mas que não a chama há 15 dias, lhe mande uma mensagem de repente perguntando se ela quer passar a noite na casa dele. Uma mulher mesmo cansada e precisando acordar cedo no dia seguinte sabe que encontraria alguma força para pedalar porque quando chegasse lá descansaria nos braços de alguém que a admirasse e distraísse. Uma mulher sente uma pontada na vagina por vontade de transar e outra no peito por saber que ele não vai lhe mandar mensagem nenhuma. Ainda assim uma mulher confere seu celular. Uma mulher experimenta o desapontamento mais uma vez. Uma mulher então recolhe toda a bagunça do quarto enquanto o computador liga. Uma mulher pensa que a dificuldade que o computador tem em ligar é a mesma que ela tem em se por de pé pela manhã. Uma mulher não encontra a outra mulher em casa e imagina de que forma aquela mulher escolheu aplacar suas dores nessa noite. Uma mulher manda uma mensagem para a outra não esquecer de se cuidar e voltar pra casa. Uma mulher tenta entender por onde começa o trabalho atrasado e esboça uma ideia que acaba por se tornar o próprio trabalho com alguns ajustes. Uma mulher passa uma hora e meia tentando sistematizar a mística linguística dos significados. Quando uma mulher termina o trabalho escuta barulho no portão e respira aliviada por ter terminado antes que aquela outra mulher chegasse e a interrompesse. Uma mulher envia o trabalho para a professora sem conseguir escrever nada no corpo do e-mail além de “entregue prof”. Uma mulher fecha o computador reconhecendo a aproximação dos passos da outra mulher, que entra na sala sorrindo e forjando tranquilidade. Uma mulher espera em silêncio até que escuta a outra mulher começar a chorar assim que fecha a porta do banheiro. Uma mulher se preocupa com a outra mulher e com a hora que já se adianta e ela ainda precisa escovar os dentes, passar fio dental e tonificar a pele. Uma mulher recebe uma notificação do tinder enquanto aguarda a outra se reestabelecer e observa que os homens da casa não participam do que se passa com elas. Uma mulher verifica a notificação de um menino de 21 anos, 12 anos mais jovem que ela. Uma mulher pensa que poderia apenas transar e ao mesmo tempo antecipa o frustrante da situação. Uma mulher se sente só, exausta e ridícula. Uma mulher olha as sandálias novas que chegaram do correio para alegrá-la. Uma mulher pensa que irá combiná-la com aquele macacão azul, assim que tiver uma oportunidade. Uma mulher conclui heroica que não precisa de uma oportunidade e que pode se arrumar muito linda para o trabalho. Uma mulher acreditava que era linda até que um dia disseram que ela não era. Desde então, uma mulher se esforça para voltar no tempo. Uma mulher se questiona se chegou a hora de passar cremes anti-idade. Uma mulher se questiona se tem dinheiro para gastar com isso. Uma mulher se sente fútil por recorrer a esse tipo de tecnologia. Uma mulher aposta na sua inteligência cansada e decide que esse foi mais um dia em que ela superou bravamente o seu destino social. Uma mulher escuta vozes de conversa ao telefone vindas do banheiro, e tenta adivinhar o que acontece com aquela outra mulher. Uma mulher escuta risadas íntimas vindas do banheiro, seguidas de um BABACA com raiva verdadeira. Então uma mulher sabe que aquela outra mulher está no limite de sua sensibilidade por conta da bebida e que conversa com o ex/atual com quem não consegue terminar apesar de já ter entendido que ele é um bosta. Uma mulher se pergunta se ela terá um filho, e se a criança a salvará do alcoolismo ou aprofundará ainda mais a sua depressão. Uma mulher escuta do seu quarto a outra abrindo a porta do banheiro e entrando no quarto. Uma mulher entra no banheiro, escova o dente, faz xixi e tonifica a pele, achando que é inútil porque os cravos aparecem da mesma forma. Uma mulher espia por baixo da porta da outra mulher e sente alívio ao ver as luzes apagadas. Uma mulher dá boa noite para as outras pessoas da casa que percebem o que está acontecendo enquanto resolvem, enfim, lavar a louça. Uma mulher se lembra de que não jantou. Uma mulher fecha a porta do seu quarto e acende a luminária para diminuir a intensidade da luz nos olhos. Uma mulher disfruta da luz amarela e baixa da luminária e de como ela torna seu quarto o quarto de uma escritora. Uma mulher passa fio dental em sua cama olhando pro teto. Uma mulher não tem forças de levantar para jogar o fio dental sujo no lixo e deixa ali mesmo, sob a cômoda ao lado da cama. Uma mulher se pergunta se um homem que a conhecesse a fundo a acharia porca. Uma mulher deseja fechar os olhos, mas ainda não está pronta para se despedir da meia luz do quarto. Uma mulher lembra que esqueceu o copo de água. Uma mulher levanta, busca água e resolve fazer xixi outra vez. Uma mulher encara os pés enquanto mija lembrando que esqueceu de cortar as unhas. Uma mulher se limpa. Uma mulher volta para o quarto e entende que deixou o copo de água cheio embaixo do filtro. Uma mulher volta buscar seu corpo de água já sem força para se rebelar contra si própria. Uma mulher coloca o copo na cômoda ao lado da cama, depois pega ele de volta e dá um grande gole. Então uma mulher volta a colocá-lo sob a marca de água na madeira. Uma mulher ajeita o lençol e os travesseiros. Uma mulher decide tomar um comprimidinho de valeriana, fitoterápico, para ter certeza de que não vai acordar de madrugada com fome ou insônia. Uma mulher apaga a luminária. Uma mulher olha uma última vez o celular, por total força do hábito. Uma mulher coloca o celular para despertar já antecipando o dia que virá. Uma mulher sente cansaço em silêncio. Uma mulher se preocupa se ficará viciada em remédio natural para dormir. Uma mulher se preocupa. Uma mulher dorme.